O Sistema Único de Saúde completa 20 anos neste mês. Fruto de uma grande mobilização social e alavancado pela redemocratização nos anos 80, o SUS atualmente beneficia direta e indiretamente toda a população brasileira. A maior política social em curso no país trouxe grandes avanços, como queda de mortalidade infantil e criação e ampliação de programas como Saúde da Família. Embora tenha um histórico positivo, a rede pública ainda enfrenta desafios, sendo os principais o seu subfinanciamento e gestão. Esses são alguns dos temas da entrevista concedida pelo ministro da Saúde, José Gomes Temporão, para a Agência Saúde.
O ministro da Saúde tem 56 anos e é médico sanitarista, formado pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Especialista em doenças infecciosas e tropicais, Temporão é mestre em Saúde Pública pela Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz e doutor em Saúde Coletiva pelo Instituto de Medicina Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
AGÊNCIA SAÚDE - O SUS faz parte de uma Reforma Sanitária que começou há 20 anos. Como o senhor avalia os resultados obtidos até agora?
MINISTRO - O balanço é muito positivo. As pessoas se esquecem como era o sistema de saúde antes da implantação do SUS. Há 20 anos, existiam três tipos de brasileiros: uma parte da população rica, que podia pagar diretamente consultas, exames e internações; uma outra parcela, os trabalhadores com carteira assinada, que tinha direito à saúde da Previdência Social; e a terceira, formada pela maioria, que não tinha direito a absolutamente nada, ou seja, eram objeto da filantropia e da caridade.
Apenas em 1988, com a nova Constituição e a estruturação do Sistema Único de Saúde, todos os brasileiros passaram a ter acesso à saúde como um direito. Um salto de cobertura de 30 milhões de pessoas para 190 milhões de pessoas, sendo que 80% delas atualmente dependem exclusivamente do SUS para ter acesso aos serviços de saúde. Isso, por si só, já justifica essa política.
Assim, houve grandes avanços, que se expressam por um aumento da cobertura da população por políticas de saúde, como os programas Saúde da Família, política de humanização, Samu (Serviço de Atendimento Móvel de Urgência), acesso a medicamentos de alto custo, Brasil Sorridente e DST/ AIDS, Programa Nacional de Imunização, controle do tabagismo, entre outros avanços e conquistas obtidos nesse período.
Em que pesem as dificuldades históricas e estruturais de implementação de um projeto da envergadura do SUS, a abrangência e o impacto do SUS atingiram marcos incontestáveis, em que se destacam: 5.900 hospitais credenciados, 64 mil unidades de atenção primária, 28 mil Equipes de Saúde da Família (ESF), realização de 2,3 bilhões de procedimentos ambulatoriais anuais, 15,8 mil transplantes, 215 mil cirurgias cardíacas, 9 milhões de procedimentos de quimioterapia e radioterapia e 11,3 milhões de internações.
AGÊNCIA SAÚDE - O SUS é uma utopia? Saúde é um direito de todos os cidadãos hoje?
MINISTRO - O SUS deixou de ser uma utopia e, hoje, é uma realidade. A saúde percebida como um direito está presente cada vez mais na consciência dos brasileiros e brasileiras. Também faz parte cada vez mais das ações dos governos, no objetivo de prestar um atendimento digno e adequado à população.
É evidente que o sistema se defronta com fragilidades. A principal delas é o subfinanciamento crônico. Apenas para dar um exemplo, em 2005, segundo recente pesquisa publicada pelo IBGE, a despesa de consumo final com bens e serviços de saúde, em 2005, foi de R$ 171,6 bilhões (8,0% do PIB). Desse total, as famílias gastaram R$ 103,2 bilhões e a administração pública gastou somente R$ 66,6 bilhões.
Esse subfinanciamento crônico, evidentemente, coloca obstáculos à ampliação da cobertura e do acesso dos brasileiros às políticas e também à qualidade desse serviço. Uma das soluções para esse problema está no Congresso Nacional. Trata-se da regulamentação da emenda constitucional de número 29, que definirá o que são gastos em saúde. Somente com a correta aplicação dos recursos estaduais, serão adicionados do setor mais de R$ 5 bilhões. O texto também definirá uma maior parcela de valores que serão colocados pelo governo federal na saúde.
AGÊNCIA SAÚDE - O senhor faz parte do grupo que idealizou o SUS. Há 20 anos, qual era o objetivo central dessa Reforma Sanitária?
MINISTRO - O objetivo central era, na realidade, o que acabou garantido pela Constituição: a saúde como um direito de todos e um dever do Estado. Também era um dos objetivos centrais – e que foi conquistado – a unificação do sistema, uma vez que, antes de 1988, a saúde estava distribuída por vários ministérios. Outro ponto de conquista foi a descentralização do sistema, o que permitiu que as ações sejam executadas mais próximas da população. Hoje, a saúde é gerenciada na ponta, administrada pelos estados e pelos municípios.
AGÊNCIA SAÚDE - Como o senhor descreveria o SUS que temos hoje? Ele atende suas expectativas de 20 anos atrás?
MINISTRO - O SUS é um sistema que avança e vem colhendo conquistas significativas. A cobertura da Estratégia do Saúde da Família, o programa de AIDS, o programa de imunizações, o programa de transplantes (o Brasil é o segundo país do mundo em número de transplantes de órgãos) são exemplos do sucesso do SUS.
Por outro lado, os obstáculos são de dois tipos. Um é a questão do financiamento. Outro é a gestão. Nós temos que melhorar a qualidade do gasto e encontrar arranjos e estratégias institucionais, que permitam usar melhor os recursos existentes.
Uma das respostas para esse gargalo é o projeto de lei que cria as fundações estatais. Para os hospitais públicos, são estruturas mais dinâmicas, com concurso para contratação de pessoal em regime de CLT, e formas de licitação para compra de materiais e equipamentos, com mais agilidade. Atenderá ao interesse estritamente público, por meio de contrato que estabelece quantidade de atendimentos e qualidade do serviço.
Eu, que acompanhei desde o início o sistema, diria que, mesmo percebendo muitas deficiências e fragilidades, avançamos muito durante esse período e temos respostas adequadas para as dificuldades que pudemos observar ao longo desses anos.
AGÊNCIA SAÚDE - Os programas brasileiros de imunização, controle do tabagismo e de assistência aos portadores de HIV são citados mundialmente como exemplos. O que faz a diferença nesses casos: a gestão, a verba destinada aos programas?
MINISTRO - Uma marca que junta os três programas é a continuidade na gestão, na estratégia e na profissionalização desses programas. O Programa Nacional de Imunizações está completando 35 anos de existência. O de controle do tabagismo, mais de 15 anos. O de assistência a portadores de HIV, também. São planos que foram pensados, estruturados e mantidos ao longo dos anos.
Esses programas sempre tiveram um respaldo da população, que percebe neles qualidade e relevância social. Existe também a percepção de que, com a implantação desses programas, os resultados começaram a acontecer. Isso criou uma situação de feedback, que os fortaleceu cada vez mais.
AGÊNCIA SAÚDE - Com explicar a existência de ilhas de excelência na alta complexidade e o fracasso na rede de atenção básica?
MINISTRO - Aí há duas questões. A primeira, a existência de ilhas de excelência na alta complexidade. É verdade que temos alguns hospitais, como o Instituto Nacional de Câncer e o Instituto do Coração, que são referências, inclusive internacionais. Mas discordo da afirmação de que há um fracasso na rede de atenção básica. Basta olharmos a última Pesquisa Nacional de Demografia e Saúde da Mulher e da Criança, onde se mostra de maneira muito clara o fantástico impacto da Saúde da Família na redução da mortalidade infantil e do percentual de óbitos em menores de cinco anos e na melhoria da qualidade de vida da população brasileira. Somente este programa atinge mais de 90 milhões de pessoas. Veja que, nos últimos dez anos, houve a redução em mais de 50% da desnutrição das crianças menores de cinco anos. No período, também tivemos uma queda de 44% na mortalidade infantil, o que tem indicado que iremos cumprir antes do tempo uma das Metas do Milênio, da OMS, que trata do tema. A atenção básica é uma das peças fundamentais dessa conquista.
AGÊNCIA SAÚDE - Sem dúvida, o universo de pessoas atendidas pela rede pública de saúde é mais amplo do que há 20 anos. Não é uma contradição, cada vez mais brasileiros precisarem de planos de saúde privados?
MINISTRO - Na realidade, nós temos apenas 20% da população brasileira que usa plano de saúde privado. Os demais 80% usam exclusivamente o Sistema Único de Saúde. Quero chamar a atenção para uma questão muito importante e pouco divulgada. Os brasileiros que usam o plano de saúde privado também utilizam o Sistema Único de Saúde, embora pensem que não.
Eles fazem uso do Sistema Único de Saúde quando precisam de um transplante de órgãos; quando têm uma doença crônica grave e precisam tomar um medicamento de alto custo; quando têm um acidente e são atendidos no pronto-socorro municipal ou quando telefonam para o SAMU/ 192 e são atendidos em sua residência; quando utilizam o programa nacional de vacinação; ou quando compram um medicamento na farmácia ou um alimento no supermercado. Em todos esses momentos, em todas essas atividades, o Sistema Único de Saúde está presente, oferecendo seus serviços.
Há, na sociedade, uma certa ideologia de que o plano privado seria um degrau na subida do status da família, do cidadão, em relação à saúde. Isso é um equívoco porque, na realidade, o Sistema Único de Saúde, em muitos municípios brasileiros, oferece uma atenção de qualidade igual ou superior ao sistema privado.
Fonte: Ministério da Saúde