Residências Terapêuticas ajudam a recuperar a cidadania de pacientes com transtornos mentais
Ela se expressa com muitos sons e principalmente gestos. Cecília*, 42 anos, foi encontrada na rua com o filho pequeno. A criança foi enviada para uma creche e Cecília foi internada no Hospital Areolino de Abreu. Isso foi há oito anos. Ela tem problemas com a linguagem e é portadora de transtornos mentais.
Depois de cinco anos internada em um hospital psiquiátrico, hoje é uma das pacientes atendidas na Residência Terapêutica do bairro Porenquanto (zona norte de Teresina). As residências são um dos eixos da nova política de saúde mental que inclui, ainda, os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) e o Programa “De Volta para Casa”.
O filho foi adotado por outra família, mas nunca perdeu o contato com a mãe biológica. Quando Cecília escuta o nome do filho, muda de expressão, abre um sorriso largo e trata logo de mostrar fotos e os presentes que ganha. Ele faz visitas regulares à mãe, que sempre que pode vai passar os finais de semana com o filho na casa dos pais adotivos.
Há três anos, ela mora na Residência do Porenquanto. Hoje, Cecília tem a doença controlada, freqüenta regularmente o CAPs Norte (uma das obrigatoriedades para que o paciente seja inserido no programa das residências terapêuticas), faz aulas de computação, estuda na Unidade Escolar Matias Olímpio, onde está aprendendo a se comunicar através das linguagem de Libras (Língua Brasileira de Sinais) e ainda faz aulas de natação.
“Hoje eu sou mais feliz, mais segura”, esta declaração foi dada por Teresinha*, 52 anos, portadora de esquizofrenia, interna do Hospital Areolino de Abreu durante quatro anos. Teve sua primeira crise aos 29 anos de idade, perdeu a mãe adotiva logo depois. Passou por muitos Estados até chegar ao Piauí. Morou durante algum tempo no Mercado Central de Teresina. “Nunca passei fome porque as pessoas lá do Mercado me davam comida, roupas, mas eu não tinha um lar”, conta.
Teresinha exerce normalmente o seu direito de ir e vir. Freqüenta o CAPs Norte, onde tem o acompanhamento de uma equipe multidisciplinar e recebe a medicação necessária para controlar a doença, anda de ônibus, pratica hidroginástica e cuida dos afazeres da casa do Porenquanto onde divide o quarto com Cecília.
Cecília e Teresinha são exemplos de que as Residências Terapêuticas são um sucesso no tangente à reinserção social de pacientes egressos de hospitais psiquiátricos. “As Residências Terapêuticas funcionam a contento e os resultados superam as expectativas, visto que o processo de reabilitação e reinserção social dos pacientes está realmente acontecendo, o que pode ser mensurado através das muitas conquistas alcançadas, como a inserção no mercado de trabalho, processo de alfabetização, relacionamento harmonioso com a vizinhança, melhoria da auto-estima e da estabilidade emocional. O novo espaço de moradia está sendo saudável para o tratamento, a recuperação, o resgate da cidadania, o estímulo à autonomia e a reabilitação psicossocial dos moradores”, explica a diretora do Hospital Areolino de Abreu, Márcia Astrês.
A Política Nacional de Saúde Mental, através da Lei Federal 10.216, de 6/04/2001, indica a desinstitucionalização, ou desospitalização, através da implantação dos Serviços de Residências Terapêuticas e outros. A Lei Paulo Delgado, como também é conhecida, é responsável pelo redirecionamento da assistência em saúde mental, pois privilegia o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária e dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais.
A psicóloga da Gerência de Atenção à Saúde Mental da Secretaria Estadual da Saúde, Jeorgiane Soares, explica que as residências foram criadas para retirar pacientes egressos de longas internações psiquiátricas e oportunizar a eles um lar. “As residências são uma forma de devolver a autonomia dos pacientes sobre a sua vida. Lá eles voltam a ter contato com a liberdade e aprendem a exercer novamente o seu direito de escolha, pois participam das decisões da casa, das compras, da limpeza, enfim, das atividades corriqueiras do lar. É a humanização do tratamento”, explica a técnica.
De volta para casa
O Piauí conta hoje com quatro Residências Terapêuticas. Em Teresina, 17 pacientes estão distribuídos nas casas localizadas nos bairros Tabuleta (zona sul de Teresina), Memorare e Porenquanto (zona norte da capital). Em União (município localizado a 56 km de Teresina), a Residência tem cinco pacientes. Elas são mantidas com recursos estaduais e federais. A maioria dos pacientes recebe um incentivo financeiro para a ressocialização provenientes do “Programa de Volta Para Casa”, do Ministério da Saúde. O programa é considerado um marco no tratamento de pacientes com transtornos mentais, pois devolve o direito de prover a sua vida e propicia uma melhor reabilitação.
Atualmente, 21 pacientes egressos do Hospital Areolino de Abreu recebem o benefício de R$ 320,00 do “Programa De Volta pra Casa”. Eles são ex-moradores do Areolino, escolhidos e distribuídos nas casas com base na avaliação da equipe interdisciplinar, onde foram levados em consideração o tempo de moradia no hospital, grau de dependência e afinidades afetivas, como explica Márcia Astrês, uma das idealizadoras do projeto que criou as residências no Piauí. “Esses serviços são pioneiros no Estado e são de extrema relevância, pois oferecem oportunidades aos moradores de desempenhar atividades normais da vida diária, através das quais aumenta sua auto-estima, melhora a capacidade de relacionamento e aprende a viver de forma atuante na comunidade”, afirma a diretora. Alguns pacientes que recebem o benefício tiveram a oportunidade de voltar para a convivência familiar, uma referência importante para quem sofre de algum transtorno mental.
Márcia Astrês frisa, ainda, que, com este passo importante o Piauí avançou muito no que concerne à Legislação Brasileira sobre Saúde Mental, que defende a proposta de reorientação do modelo assistencial e incentiva tanto técnica quanto financeiramente a desospitalização de pessoas acometidas por transtornos mentais com história de longa internação psiquiátrica.
“Esse projeto visa incluir cada vez mais essas pessoas na comunidade. Quanto maior a integração na vida social maior a chance de total inserção”, afirma a gerente de atenção a saúde mental da Secretaria da Saúde, Gisele Martins.
Atualmente 20 pacientes moram no Hospital Areolino de Abreu, sendo que a instituição está preparando um projeto para a inserção deles em mais três novas Residências.
Avanços nas Políticas de Saúde Mental.
Referência em Saúde Mental para o Piauí e estados do Norte e Nordeste como Maranhão, Tocantins, Pará, entre outros, o Hospital Areolino de Abreu, em 2004, aderiu ao Programa de Reestruturação da Assistência Psiquiátrica Hospitalar do SUS (PRH) e realizou a redução de 33 leitos. Em 2005, reduziu mais 40 leitos. Estas reduções foram realizadas para atender às necessidades de ajustamento do hospital aos princípios da Política Nacional de Saúde Mental, que recomenda a desospitalização de pessoas com transtorno mental excluídas do convívio social. Como parte também do plano de reestruturação da atenção em saúde mental, o Hospital elaborou um projeto terapêutico para absorção dos pacientes nos serviços extra-hospitalares e inaugurou, em 2006, as três primeiras Residências Terapêuticas no Piauí.
O processo de redução de leitos em hospitais psiquiátricos e de desinstitucionalização de pessoas com longo histórico de internação tornou-se política pública no Brasil a partir dos anos 90. O número de leitos psiquiátricos vem sendo reduzido de forma gradativa e programada.
Nos últimos três anos, a desospitalização de pessoas com longo histórico de internação psiquiátrica avançou significativamente, sobretudo através do incentivo que o Ministério da Saúde tem oferecido para a criação de mecanismos seguros para a redução de leitos no país e a expansão de serviços alternativos ao hospital psiquiátrico. O Programa Nacional de Avaliação do Sistema Hospitalar/Psiquiatria (PNASH/Psiquiatria), o Programa Anual de Reestruturação da Assistência Hospitalar Psiquiátrica no SUS (PRH), assim como a instituição do Programa de Volta para Casa e a expansão de serviços como os Centros de Atenção Psicossocial (CAPs) e as Residências Terapêuticas, vem permitindo a redução de leitos psiquiátricos no país. Embora em ritmos diferenciados, a redução vem se efetivando em todos os estados brasileiros. Segundo dados do Ministério da Saúde, entre os anos de 2003 e 2005 foram reduzidos 6.227 leitos em todo o Brasil.
Arte como terapia
Através de expressões artísticas como a poesia, artesanato, pintura em tela os pacientes do Hospital Areolino de Abreu têm a oportunidade de se tratar de uma forma lúdica e agradável, produzindo obras dentro das oficinas de artes e terapia ocupacional.
Para a educadora artística do Hospital, Carla Pedrosa, a arte nesse trabalho, funciona com um verdadeiro remédio para essas pessoas. “A importância desse tipo de incentivo é tirar os pacientes da rotina da doença oferecendo uma terapia que lhes dê a oportunidade de expandir a criatividade”, garante a educadora. “Aqui nós temos vários pacientes que possuem um talento nato para as artes”, complementa Carla Pedrosa.
Aproveitando as habilidades artísticas dos pacientes do hospital, alguns trabalhos foram inscritos no IV Concurso Nacional de Pintura e Poesia promovido por um grande laboratório de medicamentos, que tem como objetivo mostrar o trabalho artístico de pacientes com diagnóstico de esquizofrenia. O hospital tem dois pacientes inscritos no concurso: o jovem D.S com a tela “A Seca no Sertão” e R.J.S, que participa na categoria de poesia e pintura em tela, ambas com o nome “Prenúncio”. O paciente R.J.S tem um quadro clínico controlado e encontrou na arte uma oportunidade de expressar aquilo que vê nas ruas. “Pela primeira vez me sinto gratificado em fazer pinturas. Gosto muito de escrever e pintar sobre a minha cidade, além de ter muitos trabalhos escritos. Se eu ganhar, talvez possa publicar os meus livros”, conta o paciente.
O Hospital também aproveita períodos de festas como o Natal para desenvolver oficinas de artes. Em 2008, vários produtos natalinos foram confeccionados por pacientes com alta médica e por pacientes em processo de adaptação aos tratamentos, e comercializados em um bazar organizado pelo Areolino. “É impressionante como eles transformam uma simples caixa de remédios, dos que eles usam aqui, em uma bela obra de arte”, comenta Márcia Astrês.
Durante todo o ano, os pacientes participam, ainda, de atividades extras como baile de carnaval e festas juninas, gerando oportunidades de integração com a comunidade.
Secretaria de Saúde incentiva prefeituras a implantar CAPS
A bióloga Cláudia*, 29 anos, fez acompanhamento psicológico e psiquiátrco no CAPs para tratar um diagnóstico de Síndrome do Pânico. Lá ela descobriu que sofria também de Transtorno Obsessivo-Compulsivo (TOC). Ela freqüentou o Centro durante oito meses. Hoje ela leva uma vida normal e não faz mais uso de medicamentos. “O CAPs me ajudou muito”, diz.
Os Centros de Atenção Psicossocial surgiram na década de 80 e passaram a receber uma linha específica de financiamento do Ministério da Saúde a partir do ano de 2002. São serviços de saúde municipais, abertos, comunitários, que oferecem atendimento diário às pessoas com transtornos mentais severos e persistentes, realizando o acompanhamento clínico e a reinserção social destas pessoas através do acesso ao trabalho, lazer, exercício dos direitos civis e fortalecimento dos laços familiares e comunitários.
“A Secretaria Estadual da Saúde dá todo o suporte aos gestores que tenham interesse em implantar esse serviço em seus municípios”, explica Gisele Martins. A cobertura assistencial vem melhorando progressivamente nos últimos anos, mas ainda não é a ideal. “Pretendemos encerrar o ano de 2009 com 52 CAPs instalados”, revela a gerente de saúde mental, esclarecendo que cidades com 20 mil ou mais habitantes podem ter o serviço desde que preencham os requisitos básicos exigidos pelo Ministério da Saúde. “Os interessados devem ter em mãos o perfil epidemiológico em transtorno mental do seu município e elaborar projeto pedindo a implantação do CAPs”, explica.
O modelo atual preconiza que os CAPs devem prestar uma assistência extra-hospitalar de base comunitária. “Os CAPs não são substitutivos dos hospitais psiquiátricos, eles são uma forma de apoio extra baseados no convívio comunitário. Os pacientes com crises psicóticas que precisam de atendimento de urgência não podem ser atendidos nos centros pois estes não estão preparados para atender esse tipo de demanda que necessita de internação”, explica Gisele Martins.
Os CAPS se diferenciam pelo porte, capacidade de atendimento, clientela atendida e organizam-se no país de acordo com o perfil populacional dos municípios brasileiros. Assim, estes serviços diferenciam-se como CAPS I, CAPS II, CAPS III, CAPSi (criança e adolescente) e CAPSad (álcool e outras drogas).
No Piauí, são 27 CAPs distribuídos da seguinte forma: Teresina (4), Parnaíba, Luís Correia, Piracuruca, Piripiri, Miguel Alves, Barras, Campo Maior, Altos, União, Água Branca, Angical, Floriano, Luzilândia, Picos, Oeiras, Paulistana, São Pedro, Guadalupe, São Raimundo Nonato, Bom Jesus, Uruçuí, Batalha e José de Freitas.
Já estão com o incentivo financeiro para a implantação: Parnaíba (CAPS II), Valença, Pio IX, Cocal, Simplício Mendes, Piripiri, Campo Maior (CAPS II), Pedro II, Canto do Buriti e São João do Piauí.
Encontram-se em trâmite os processos de mais 15 cidades: Cajazeiras, Regeneração, Elesbão Veloso, Anísio de Abreu, Pimenteiras, Corrente, Buriti dos Lopes, Santa Cruz dos Milagres, Campo Maior (CAPSi), Rio Grande do Piauí, Esperantina, Francisco Santos, Simões, Porto e Joaquim Pires.
Saiba mais sobre as Residências Terapêuticas
As Residências Terapêuticas são casas localizadas no espaço urbano, constituídas para responder às necessidades de moradia de pessoas portadoras de transtornos mentais graves, egressas de internações longas e ininterruptas (por pelo menos dois anos) de hospitais psiquiátricos e que não possuem vínculos sociais, nem familiares. Embora as residências terapêuticas se configurem como equipamentos da saúde, estas casas, implantadas na cidade, devem ser capazes, em primeiro lugar, de garantir o direito à moradia e de auxiliar o morador em seu processo – às vezes difícil – de reintegração na comunidade.
Os direitos de morar e de circular nos espaços da cidade e da comunidade são, de fato, os mais fundamentais direitos que se reconstituem com a implantação das Residências. Cada casa deve ser considerada como única, devendo respeitar as necessidades, gostos, hábitos e dinâmica de seus moradores.
Uma Residência Terapêutica deve acolher, no máximo, oito moradores. De forma geral, um cuidador é designado para apoiar os moradores nas tarefas, dilemas e conflitos cotidianos do morar, do co-habitar e do circular na cidade, em busca da autonomia do usuário. Cada residência deve estar referenciada a um Centro de Atenção Psicossocial e operar junto à rede de atenção à saúde mental dentro da lógica do território.
Especialmente importantes nos municípios-sede de hospitais psiquiátricos, onde o processo de desospitalização de pessoas com transtornos mentais está em curso, as Residências são também dispositivos que podem acolher pessoas que, em algum momento, necessitam de outra solução de moradia.
Saúde mental no PSF
Em 2008, entre as várias ações importantes, uma conquista especial foi a publicação da Portaria 154/08, que cria os Núcleos de Atenção à Saúde da Família (Nasf), com a inclusão de, pelo menos, um profissional da saúde mental nas Equipes de Saúde da Família. A aprovação desta recomendação é resultado de intenso trabalho da Coordenação de Saúde Mental, junto ao Departamento de Atenção Básica e conselhos nacionais de secretários estaduais e municipais de Saúde (Conass e Conasems), para que a transversalidade da saúde mental merecesse destaque na portaria, por conta da magnitude epidemiológica dos transtornos mentais, dos problemas relacionados ao uso do álcool e outras drogas e da necessidade de preparação das Equipes de Saúde da Família para as ações em saúde mental.
(*) nomes fictícios, alterados para preservar a identidade dos pacientes